Categorias
Brasil Espíritas Instruções de Kardec Kardec Ignorado

Espíritas e Kardecistas

Eu estou entre aqueles que não gostam da expressão Espírita Kardecista. Além da redundância, outro motivo é a margem para pensar que existem outros Espiritismos que não o fundado por Kardec. Existem? Não existem. É sabido que as religiões de matriz africana, num dado momento, apropriaram-se do nome espírita a fim de atenuar a intolerância ao qual eram vítimas. Em razão disso, o distintivo Kardecista punha em evidência a referência doutrinária para os espíritas propriamente ditos. Quem dera essa referência tivesse sido efetiva ao longo do tempo!

Hoje em dia, os adeptos do Espiritismo à la Brasiliana, citam Kardec em palestras, nomeiam grupos com seu nome, veem filmes sobre ele, curtem frases extraídas de seus textos, estampam-no em todos os lugares, mas não o utilizam como baliza na maneira de pensar e viver a Doutrina dos Espíritos. Um exemplo clássico disso está nas palestras que desenvolvem certos temas, às vezes, muito raramente citando Kardec. Funciona assim: citam-no pontualmente, naquilo que convém, e dentro de uma linha do tempo de forma que Kardec é colocado numa esteira, onde ele é superficialmente mencionado para em seguida entrar em cena uma fila de pesquisadores, médiuns e autores que suspostamente o complementam. Quem vai estudar aquele tema, vai pegar o que tem de mais atual a respeito, não é mesmo? Afinal, tantos livros atuais com um linguajar mais fácil, tsc tsc. Somos todos gratos a Kardec, mas ele que fique no seu século XIX. Então, assim como o famoso gato da caixa, nós vemos um Kardec que está e não está ao mesmo tempo dentro do movimento espírita. Tal como uma miragem, aqueles que se interessam pela Doutrina dos Espíritos, veem Kardec no horizonte distante, mas ao se aproximarem, aquela aparência dissolve-se na aridez das opiniões sem método, perde-se no turbilhão techno bubble espiritualoide, confunde-se em meio as melifluosidades das exortações bíblicas 2.0.

Não se diz mais no dias de hoje que se é Kardecista para fazer distinção aos adeptos da Umbanda, como acontecia no século XX. Então por que ainda usar esse termo? A necessidade de se dizer Kardecista nasce da tentativa de distinguir a Doutrina dos Espíritos parida por Kardec, dessa salada de opiniões pessoais de adeptos baseadas em opiniões pessoais de outros adeptos que, por sua vez, seguem orientações de espíritos que se dizem adeptos da Doutrina. Nessa escadinha das opiniões do Espiritismo Brasiliano, a única que não conta é a do Kardec; coisa muito diferente é o que acontece entre os Kardecistas que não só a consideram muito como a utilizam como parâmetro. Portanto, os Kardecistas são os que seguem Kardec e o põe em prática na sua totalidade doutrinária. No Brasil, Kardec foi servido à la carte e ainda o é por aqueles que não são Kardecistas. Os adeptos da Doutrina por ele ensinada são facilmente identificáveis pela pratica dos princípios da Doutrina, parece óbvio, mas não é. Vamos enumerar uma lista não exaustiva que decorre do entendimento desses princípios:

  1. Os Kardecistas não se referem a obra de Kardec como pentateuco. Pois que não está limitada a cinco livros e ainda que fosse apenas cinco não tem cabimento o paralelo com as cinco partes da bíblia também conhecida como Torá. A obra de Kardec não é religiosa e passa as duas dezenas de livros.
  2. Os Kardecistas sabem a diferença entre evangelho, no geral, e o Evangelho segundo o Espiritismo.
  3. Os Kardecistas fazem o Evangelho segundo o Espiritismo no Lar, o Livro dos Espíritos no Lar, o Livro dos Médiuns no Lar. E todas as demais obras de Kardec no lar.
  4. Os Kardecistas fazem uso da razão e com base nela não aceitam tudo o que dito pelos Espíritos só porque foi dito pelos Espíritos. Os Kardecistas, ao fazerem uso da razão, não aceitam cegamente nem o trabalho de Kardec, questionam-no o tempo todo.
  5. Os Kardecistas aprenderam a se relacionar com os Anjos da Guarda. Entendem o papel que estes desempenham e mantem para com eles uma relação afetiva e diária.
  6. Os Kardecistas praticam a mediunidade sem medo, sem mania de perseguição e sem terrorismo psicológico-espiritual.
  7. Os Kardecistas não criam subterfúgios para evitar as evocações. Ao contrário, eles entendem sua razão de ser e praticam-na com a mesma naturalidade com que também recebem comunicações dadas espontaneamente pelos Espíritos.
  8. Os Kardecistas sabem que a mediunidade não deve ser praticada somente dentro de um centro espírita.
  9. Os Kardecistas, em querendo e em tendo os meios à disposição, comunicam-se com seus entes queridos e amigos falecidos. Pois eles sabem que isso não é um favor concedido exclusivamente a médiuns privilegiados.
  10. Os Kardecistas não restringem o mundo espiritual a concepção de colônia ou algo que o valha. Como Kardec, eles não perdem tempo com categorias metafísicas que entram com facilidade no domínio da especulação que leva a criação de mitos e folclores.
  11. Os Kardecistas não são intolerantes para com as religiões porque sabem que o Espiritismo não está em concorrências com elas.
  12. Os Kardecistas compreendem que ninguém precisa abrir mão dos seus gostos e preferências de culto particular para ser adepto do Espiritismo.
  13. Os Kardecistas são moderados no uso de uma nomenclatura, muita criativa, associada ao Espiritismo que mais confunde do que orienta. Vide 99% do que se escreve no Brasil sobre Períspirito. Por serem Kardecistas, preferem os termos desenvolvidos por Kardec, inclusive para evitar a confusão de ideias, conforme ele propos.
  14. Os Kardecistas respeitam a Bíblia por tudo que ela representa, pelo seu valor histórico e simbólico para o Cristianismo, assim como respeitam todas as obras sagradas de todas as religiões. Mas nenhuma delas pode ser tida como obra sagrada para a doutrina espírita tendo em vista que a própria doutrina não é uma religião.
  15. Os Kardecistas sabem que a obra de Kardec não é absoluta, por não esgotar toda a doutrina, compreendem que ainda há muito conhecimento a ser desenvolvido, mas que esses desenvolvimentos ulteriores precisam de método e critério. Portanto não podem, por óbvio, contradizer as deduções de Kardec, sem refutá-las adequadamente.
  16. Os Kardecistas sabem a diferença entre Doutrina Espírita e opinião pessoal.
  17. Os Kardecistas não são avessos aos princípios do magnetismo nem ao estudo das suas técnicas.
  18. Os Kardecistas não endeusam Espíritos, não bajulam palestrantes e não idolatram médiuns.
  19. Os Kardecistas são chamados de fanáticos e de ortodoxos pelos não-Kardecistas justamente porque fazerem o uso da razão e por aplicarem a metodologia espírita de Kardec.
  20. Os Kardecistas estão abertos às críticas em seus estudos e trabalhos porque sabem que o debate é necessário para a construção do conhecimento.
  21. Os Kardecistas aplicam a obra de Kardec por completo. Não só alguns livros nem só alguns capítulos de alguns livros.
  22. Os Kardecistas não hostilizam os não-Kardecistas do contrário entrariam em contradição com Kardec.
  23. Os Kardecistas não perdem tempo discutindo o sexo dos anjos.
  24. Os Kardecistas não entram na pilha dos médiuns nostradâmicos que anunciam eventos cataclísmicos com data marcada.
  25. Os Kardecistas não fazem o bem com medo de serem expurgados na Transição Planetária.
  26. O Kardecista não obriga o outro a ser Kardecista, pois respeita a religião e a crença alheia, mas quando julga oportuno deixa claro o que é a Doutrina Espírita em Kardec e o que não é.
  27. O Kardecista quando fala de Doutrina Espírita dá as referências para que elas sejam consultadas pois não quer ser aceito cegamente.
  28. Precisa dizer que Jesus é a referência moral máxima do Kardecista?
  29. O Kardecista sabe que o mais importante é correr atrás da sua transformação moral. Estuda-se a fim de eliminar suas más inclinações. Faz essa filosofia valer na prática do seu a dia a dia porque sabe que com a aplicação desse conhecimento, por ter consciência e a comprovação de que não está sozinho, ele consegue ser mais feliz.

As correntes baseadas nas mais variadas psicologias humanas aderiram ao Espiritismo e adequaram-no cada qual as suas próprias preferências psicológicas. Desde os hippies surfistas da psicologia de auto ajuda até os paquitos neopentecostais da renovação bíblico espírita, o Brasil exporta para o mundo versões de um Espiritismo que varia de acordo com a opinião carismática de quem fala em seu nome.

Quando conheço uma pessoa espírita e tenho a oportunidade de conversar com ela a respeito, em dois palitos de conversa identifico se a pessoa é Kardecista ou não: a contorção das caretas da pessoa ao ouvir sobre evocações e a palidez da sua face quando comento sobre a mediunidade praticada no lar, não deixam dúvida. Mas não faço isso apenas para me divertir com as reações, até porque quando falo de Kardec, não tenho a intenção de chocar ninguém. Pasmem! Apesar de ser muito comum os espíritas ficarem chocados com os ensinamentos de Kardec.

Mas fulano disse! Mas beltrano falou! Mas no livro de Cicrano! Desculpa, respeito sua crença em beltranos, fulanos e cicranos, mas sou Kardecista.